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A exposição Manuel Vicente: Trama e Emoção, inaugurada no Verão de 2011 Museu do Oriente, em Lisboa, encontra-se agora em Guimarães, depois de ter passado por Coimbra e Porto, revelando alguns aspectos menos divulgados, pormenores e leituras da obra de Manuel Vicente. Foi organizada e comissariada por João Afonso, responsável pela selecção dos projectos, do material e do título que resume a leitura proposta.

Há muito que faltava uma nova reflexão sobre o legado de Manuel Vicente, confrontando algumas das suas obras e projectos. A proposta de João Afonso é realizada através de uma apresentação cronológica, onde se realçam alguns dos seus aspectos mais significativos. 

A exposição é, em si mesma, uma Trama e uma Emoção. Primeiro porque, literalmente, nos entrelaça com as obras e o material exposto. Depois, porque nela transparece a tramaentre a vida e a obra de Manuel Vicente (bem expressa nos filmes que integram a exposição1e no livro editado por ocasião da sua apresentação em Guimarães, Arquitetura falada: o exercício da palavra2), suportadas, seguramente, por um constante compromisso entre as duas e por uma  constante vontade de traduzir a sua experiência de vida, construindo o espaço ou, como foi referido a propósito de uma outra exposição da sua obra, Prender todo o Tempo Ocupando o Espaço

Para além de desenhos originais, a exposição é composta por maquetas3 e painéis-resumo com imagens e textos. Um conjunto de mesas constitui o suporte expositivo de todo o material e organiza o espaço, pontuado por candeeiros suspensos, encarnados, que iluminam as maquetas, na sua maioria, brancas, criando-se, deste modo, uma referência, em tom provocatório, aos ambientes distantes de Macau.

O material expositivo, para além do valor arquitectónico, constitui uma das componentes da Emoção, porque, através deste, se revelam muitas personagens e momentos de um percurso. 

Nos desenhos, reconhecem-se muitas das mãos que passaram, quer pelo atelier de Macau quer pelo de Lisboa, e que, com Manuel Vicente, realizaram os esquiços e os desenhos de maior rigor. Os esquissos traduzem também, de um modo progressivo, quer a complexidade de que as obras se vão revestindo no decorrer dos anos quer a transformação do modo de representação e de registo tão característicos do seu processo de trabalho, os quais vão da tinta branca correctora, à colagem e manipulação de fotocópias (magistralmente ilustrado nos desenhos do Concurso de Ideias para o recinto da Expo ‘98).

Os desenhos produzidos no atelier de Manuel Vicente sempre contiveram esse valor representativo de um processo muito dinâmico em si mesmo até que o projecto se defina e estabilize, e, como tal, são por natureza densos e participados. 

Num certo sentido, são poucos os esquissos de Manuel Vicente mas, paradoxalmente, são todos seus. São poucos porque nunca foi seu hábito recolhê-los e assiná-los; mas são todos seus porque desenhar é para si como uma festa. 

Muitas vezes, esses registos resultaram em intermináveis sobreposições de vegetais preenchidos com vigorosos traços, como no caso dos desenhos de estudo do primeiro Concurso para o fecho da Baía da Praia Grande, em Macau (infelizmente não integrado na exposição). As maquetas são brancas, escondendo, sob esse manto, as transgressões e subversões da sua obra. Não são meros modelos; são objectos interpretativos e complexos no modo como representam as obras, umas em corte (Casa dos Bicos, Lisboa, TDM, Macau) outras pela duplicação em espelho (Fai Chi Kei, Macau). 

Não são maquetas executadas por profissionais, ou de trabalho, conferem uma grande singularidade ao material expositivo, permitindo, sem preconceito nem receios, o confronto com materiais oriundos do atelier (desenhos e outras maquetas).

A par dos desenhos e maquetas, a exposição é ainda complementada, como já se disse, por vários filmes. Dois foram realizados propositadamente para esta mostra, sendo um projecto conjunto de Jorge Figueira com José Maçãs de Carvalho. Entre estes, destaque para o monólogo de Manuel Vicente enquanto correm imagens do vazio deixado pela demolição do Fai Chi  Kei em Macau. Os filmes dão-nos a conhecer o complexo universo da vida de Manuel Vicente, feito de estadias, paragens, vivências e amizades. Trata-se de uma personagem inquieta.

As obras expostas, sobretudo as de Macau, mais expressivas em número, reflectem bem o modo de se posicionar no mundo da arquitectura.  As obras são apresentadas sem qualquer pudor, reflectindo a profunda e contínua apropriação dos que as habitaram, independentemente das alterações que foram sofrendo ao longo dos anos. Mas como diz Manuel Vicente: “Nelas está ainda presente o que para mim era essencial”. 

Há também que referir a acção do tempo e do clima, intenso e adverso. Apesar de uma utilização muito agressiva, os edifícios (alguns com quase meio século de existência) contribuíram, não só para a criação de uma trama, que estabeceu um padrão de intervir na cidade, como para uma nova leitura de Macau. O fecho da Baía da Praia Grande e a Praça Nam Van são disso um forte exemplo.

A abstracção em si mesma não faz certamente parte do imaginário de Manuel Vicente. Os lagos Ovais da Baía acrescentaram não só território a Macau, como construíram novas possibilidades, alternativas à cidade que se desenvolve a poente, desenhando-lhe um novo limite.

A exposição integra também conjunto de obras e projectos realizados em Portugal Continental. Desde a casa Weinstein, em Cascais, passando pelo projecto desenhado para as operações SAAL (Quinta do Bacalhau - Monte Coxo), o plano das Olaias e UNOR 26 e o projecto para o concurso de ideias para o recinto da Expo ‘98.

As obras de Manuel Vicente são deliberadamente diferentes porque a sua personalidade é capaz de aceitar trabalhar e construir sobre o que existe encontrando aí um pretexto para desenhar. 

A resposta para o recinto da Expo ‘98 é bem elucidativos desta atitude: reutilizar sem limites os objectos resultantes da indústria naval, não importando a sua dimensão e escala. O projecto, através das suas representações, lança e oferece sugestões para essa reutilização, propondo uma nova e diferente natureza de espaços e de construções. 

O trabalho de Manuel Vicente parece despertar um novo interesse, talvez porque, como o próprio refere, “hoje a arquitectura é muito igual, é tudo a mesma coisa”. Para si, a arquitectura portuguesa contemporânea é “totalmente desprovida de invenção: mais janela ao alto, mais janela ao baixo, mais parede branca, mais grande consola... mais do mesmo!”4

Ainda que esta exposição não apresente a totalidade da obra deste arquitecto, talvez nos emocione tanto por remeter para um processo inventivo nada resignado ou conformista. Um novo projecto será seguramente um pretexto para uma nova etapa, uma nova trama e emoção na sua vida. Como afirmou na inauguração: “se me querem vivo, dêem-me um projecto.” |

 

1 Learning from Macau (I e II), José Maças de Carvalho e Jorge Figueira (2011); Praça Nam Vam, Tomé Quadros (2006); Manuel Vicente, 15 projectos na rota do Oriente, filme realizado pelos estudantes do MIA do ISCTE-IUL, por ocasião da exposição montada naquela instituição (2010).

 

2 João Afonso, coord. Arquitetura falada: o exercício da palavra. Manuel Vicente. Sintra; [Porto]:Caleidoscópio; Atalho, 2012.

 

3 As maquetas integram igualmente a exposição supracitada (Abril de 2010). Foram executadas no âmbito da unidade curricular de História da Arquitectura Portuguesa pela orientação de Ana Vaz  Milheiro, no ano lectivo de 2009/2010.

 

4 Manuel Vicente. “Arquitetura é criar um lugar onde o inesperado possa acontecer”. Público. Lisboa. (29 Jul. 2011). Suplemento Ipsílon, p. 27-31. Entrevista concedida a Ana Magalhães.

 


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